Na 2a feira, após o trabalho, regressei a casa.
Porque chovia sem parar, desde há 10 dias atrás, a bicicleta ficou em casa e fazia agora esta distancia a pé. Debaixo do meu guarda-chuva azul, caminhei tranquilamente, enchendo a mente com os pensamentos mais variados. Se bem me lembro, acho que a maior preocupação se prendia com “o que vou fazer para o jantar?” e em desviar-me das poças de água para que os carros não me molhassem.
Chegada a casa, de imediato se desvaneceu este estado de placidez. Meti a chave ‘a porta e eis que esta, sem qualquer esforço, se abre.
Senti de imediato os calores que me são característicos quando fico alerta mas, por outro lado, não evitei exclamar “Hmm, that’s funny. I could swear I locked it this morning!”, numa de não me precipitar. Num qualquer lugar recôndito da minha cabeça, uma luz vermelha acompanhada de um alarme estridente soava já, ao mesmo tempo que a frase “something is wrong! something is wrong!” se avolumava em letras garrafais, preenchendo por total a minha mente.
Aberta a porta, a bicicleta estava caída no chão (e agora ouvia “SOMETHING IS WRONG!!! SOMETHING IS WRONG!!!”, ensurdecedoramente) mas, mais uma vez, o meu outro lado pensou: “algo a desequilibrou e caiu. talvez o descanso não esteja bom”. Mas logo deixei por completo que os alarmes me invadissem e tomei consciência de que a minha casa tinha sido assaltada.
Para além da bicicleta, também uma das colunas da aparelhagem estava no chão, enquanto que o resto do sistema de som se encontrava revolto sobre a mesa onde normalmente fica. A carpete estava enrodilhada.
“No, it can’t be! It can’t be!!!”, exclamava. E notem que o fazia em Inglês. Eu acho que era porque a situação era tão surreal e tão próxima de um filme que o Inglês me saía naturalmente, como sendo a linguagem mais apropriada.
Verifiquei que a televisão e o aparelho de DVD ainda estavam no sítio pelo que, ainda com uma réstia de esperança e tentando processar rapidamente a quantidade de informação com que era bombardeada, pensei “OK. Tentaram assaltar a casa, entraram mas, por alguma razão, não conseguiram levar as coisas todas, uma vez que tudo isto ainda está cá. Pode ser que no escritório também tudo esteja bem”.
E enquanto discorria nestes pensamentos, segui num misto de ansiedade e angústia para os outros compartimentos da casa, sem sequer me ocorrer que quem quer que fosse que tivesse feito isto talvez ainda estivesse lá. Felizmente isso não aconteceu mas o choque foi grande quando cheguei ao escritório e me deparei com a janela aberta, a cortina esvoaçante e a secretária vazia: computador, modem, colunas, rato, webcam, hard drive externa, máquina digital, carregadores, tudo... tudo roubado.
“No! No! No!” sussurrava quase sem voz. As mãos no rosto, as lágrimas a escorrerem-me e, facto interessante e até mesmo engraçado, os pensamentos mais inapropriados. Ao ver este cenário todo, sei que a primeira coisa que me veio ‘a cabeça foi “levaram a minha música toda”, o que não me parece lógico de todo mas que se veio a verificar ao longo de toda a história.
Não me lembro bem da sequência de eventos mas sei que, sem pensar, coloquei a bicicleta no sitio, levantei a coluna do chão, saí para a rua e gritei para o andar de cima, onde mora a minha senhoria. Ela assumou ‘a janela e, quase sem conseguir pronunciar as palavras que me pareciam tão surreais, falei, entrecortada por um choro estranho:
- The house has been robbed!
Desceu ela e o marido que, incrédulos, entraram para verem o mesmo cenário que eu. Acho que por uns minutos ninguém estava a pensar muito bem. Estávamos apenas estupfactos com o acontecimento: eu, porque, para além de tudo, reparei que a janela estava aberta sem ter sido forçada, quando podia jurar a pés juntos que a tinha sempre trancada; a minha senhoria porque, justamente naquele dia, passou o dia todo em casa, a entrar e a sair a toda a hora, juntamente com o carpinteiro, para arranjar coisas na cave, e lhe parecia impossível que alguém pudesse ter feito isto sem ter sido notado.
Num rasgo de lucidez, eu disse:
- We have to do something! Let’s call the police!
Em menos de nada, lá estava o detective que, da forma mais profissional que alguma vez vi (juro que parecia mesmo um filme), escutou e apontou tudo o que cada um de nós tinha para dizer, analisou a cena do crime e, para meu espanto (porque julguei que fossem lá apenas registar a ocorrência), tentou recolher impressões digitais da janela, da secretária, da cadeira, do móvel, da aparelhagem. Levou ainda consigo a rede que protegia a janela e que se encontrava no chão, do lado de fora da casa, para tentar analisar possíveis rastros na esquadra.
“E viva a América”, pensei.
Forneci todos os números de série do material roubado e perguntei se com isso seria mais fácil recuperar alguma coisa, ao que ele me respondeu:
- “To be honest Miss, we hardly ever recover anything. I wouldn’t have too many hopes!”. Frustrante!
E aí a senhoria lembrou-se que, a determinada altura, o carpinteiro referiu que havia gente em minha casa. Ela não ligou, julgando que era eu. Ainda mais frustrante!
E lá permaneci eu, sem quaisquer esperanças, num misto de choque, desamparo, tristeza e incredulidade. Ora ficava completamente séria e quase que ausente do local, fixada num qualquer ponto, como se não acreditasse no que se estava a passar, ou a realidade batia-me e desatava a chorar, num choro estranho e desconhecido para mim.
Abraçava-me a mim mesma, como que a confortar-me e a proteger-me ao mesmo tempo. Por incrível que pareça, ninguém (e falo da minha senhoria e do marido, que já me conhecem há meses) foi capaz de me tocar. Bastava uma mão no ombro e algo como “don’t worry” para eu me sentir menos perdida. Só isso, um pouquinho de calor humano. Mas não obtive absolutamente nada para além da distancia.
Passaram-se quase duas horas até que todos se foram embora e eu fiquei sozinha, naquela casa que agora me parecia desconfortável e conspurcada. Sentada no sofá, na sala, em mais um estado de apatia, fixei o olhar na carpete branca e mais um pensamento absurdo me ocorreu (é incrível a quantidade de parvoíce que nos ocorre numa situação destas): “Aposto que nem tiraram os sapatos e andaram por cima das minhas carpetes brancas a sujarem-nas!”
E senti um nojo imenso de tudo. Sentia que tudo estava sujo, invadido. “Será que mexeram nas minhas roupas? Nas minhas coisas? Alguém estranho violou o meu espaço, o meu cantinho”. Foi isso que senti, a minha privacidade invadida. Senti-me violada. E tive ganas e ímpetos de limpeza. Qual desvairada, aspirei tudo, esfreguei tudo com detergente, tentando retirar a sujidade invisível. E quando o frenesi cessou , já exausta, parei e quis partilhar a minha dor.
Telefonei a amigos/queridos: Joana mana, David e por fim o Zé. De todos recebi carinho e compreensão, apoio, amparo que me ajudou. Porque tinha consciência de que os ladrões sabiam agora o que a minha casa tinha, receei que voltassem para roubar o que não levaram e então sugeri ao Zé que viesse até minha casa buscar a aparelhagem de som (que permaneceu lá desde a minha festa de anos e que é dele). Nem teria sido preciso um pretexto. Assim que soube do sucedido, imediatamente o Zé se prontificou a ir ter comigo. E quando chegou... abraçou-me. E aí sim, finalmente senti-me acompanhada.
Foi dos abraços mais reconfortantes que alguma vez recebi e, não fosse o Zé espectacularmente impecável, tratou logo de me dizer: “vá, jantas em minha casa!”.
Fui com ele, transportámos a aparelhagem e depois foi-me servido um lauto jantar de moqueca com arroz, acompanhado de boa disposição e positivismo:
- Pah, se virmos bem as coisas, até foi bom isto tudo. Primeiro foi só dinheiro, tu estás bem, nada te aconteceu. Depois, é uma excelente oportunidade de fazeres um upgrade ao teu computador e máquina fotográfica. Tinham o quê? Dois anos!? Lá está, estavam mesmo a precisar de reforma. O ladrão até te fez um favor – brincava ele.
Descontraí e até entrei na onda:
- Yeah, tens razão. O caramelo podia era ter sido simpático e ter deixado a external hard drive para eu recuperar tudo o que tinha no computador.
Num espírito mais leve, regressei a casa, onde insisti em passar a noite sozinha, recusando ofertas de ir dormir a casa de amigos ou que eles ficassem comigo. Não quis de forma nenhuma que isto alterasse a minha vida mais do que já o tinha feito.
Confesso que estar sozinha em casa não soube lá muito bem mas, que remédio. Passou-se a noite, acordei muito em baixo mas não morri.