E hoje o dia começou assim, com tudo coberto de branco e com flocos a pairar por todo o ar.
Bonito, sem dúvida, mas muito pouco práctico.
Nas ruas, por onde os carros passavam, a neve branca tinha-se já transformado em lama e era agora uma pasta de gelo acastanhada que cobria o asfalto, o qual teve que ser partilhado por bicicletas e carros, uma vez que nas bermas da estrada se acumulavam já bancos de neve que tornavam o trânsito de binas impossível. Mesmo com este cenário, decidi pegar na minha companheira de guerra e lá me fiz ‘a estrada com a bicicleta.
Fui cautelosa e cuidadosamente, pedalando devagar e aproveitando também para apreciar as transformações que uma simples porção de água sublimada induzem no quotidiano de outra forma normal: pessoas com gorros e luvas coloridas, vestidas com casacos grossos, com cachecóis ‘a volta da cara que só deixam vislumbrar os olhos, quais ninjas, emitindo baforadas visíveis, trânsito que se desloca mais lentamente, carros com correntes nos pneus, muitas pás, alguns trenós e limpa-neves.
Os adultos caminham mais sérios e sisudos, preocupados com as quedas eminentes das crianças para quem tanta neve só pode significar diversão e entretenimento. Toda a gente com faces rosadas e narizes vermelhos. Ia muito bem entretida nestas divagações quando, a determinada altura, algo me distraiu.
Sem razão aparente a minha bicicleta adquirira uma marcha diferente do deslizar habitual. Agora, saltitava ritmicamente.
”Não! Não!” dizia já eu para mim mentalmente antes de me decidir a olhar para as rodas.
“Bonito, já está!”
De todos os dias, TODOS, TODOS desde os quase 2 anos que aqui estou, logo hoje é que eu havia de ter um furo. Não, não podia ter sido ontem, ou antes ou ainda antes. Não, tinha que ser hoje. Juro que me apeteceu desatar aos saltos e ao berros de raivinha.
Respira fundo, inspira... expira... já está.
Assim, lá começou a Inês o dia a levar com neve na fuça, a caminhar pela neve e pelo gelo, que de si já exige bastante concentração e esforço para não escorregar e, como se não bastasse, ainda a carregar com uma bicicleta coxa. Entre dentes eu só resmungava “Porra, tu é que me devias carregar minha! Não era eu a ti, pá!”
E eu até estava bastante orgulhosa da minha bina até ‘aquele momento. E’ uma bicicleta de montanha, com pneus bastante grossos e muito pesada.
Desta feita, o mais comum é ter sempre todas as outras bicicletas (de cidade) a passarem por mim em alta velocidade, enquanto eu só me consigo deslocar a passo de caracol.
“Ha! Ha! Mas não hoje”, pensei eu (Mmmmuuuahahahaha – gargalhada mafarriquenta), “Hoje vou poder finalmente mostrar as vantagens de ter uma bicicleta tão robusta”. Yeah!!! Fia-te na virgem e não corras. Toma lá um furo que é para aprenderes!
Chegada ao lab, já tarde, e toda coberta de neve, tinha ainda que apresentar Journal Club (para os que não estão no meio, isto é algo que consiste numa apresentação em powerpoint para o lab de um artigo científico, que tenha sido publicado recentemente e com um impacto de interesse geral e elevado. O tema não está necessariamente dentro da nossa área de investigação, pelo que exige alguma pesquisa adicional). Para ajudar ‘a festa, o meu chefe sugeriu que apresentasse um paper sem dúvida interessante mas muito complicado. Andei ‘a volta dele 2 dias e mesmo assim não estava segura de que conseguiria explicar a coisa convenientemente.
“Hoje o dia não está, definitivamente, a correr bem”, pensei eu enquanto desanimadamente me dirigia para a sala de reuniões. Surpreendentemente, a apresentação não poderia ter corrido melhor. No fim, vários post-docs vieram até dizer-me que tinha feito um bom trabalho e que eles tinha de facto aprendido algo novo. A melhor satisfação veio mesmo do comentário do meu chefe, que raramente ou nunca faz tal coisa: “Good job! It wasn’t an easy paper to handle.”
“Uff, já me safei!” Está visto que afinal até foi bom ter-me passado da carola logo de manhazinha. Assim, perdi toda e qualquer energia para ficar nervosa e consegui pôr o raciocínio a seguir uma lógica coerente.
Terminado o JC, tive então que ir comprar uma nova câmara de ar para a bicicleta. Lá fora a neve continuava a cair, agora de forma mais intensa. Mesmo assim, decidi arriscar e fui para a rua. “São só uns quarteirões”, pensei eu. Devias era ter estado quietinha Inês. Fui mesmo quando a tempestade de neve se decidiu a atingir o seu pico mas, nessa altura, já ia a meio do caminho e voltar para trás ou continuar dava no mesmo.
Nunca tinha assistido a algo tão violento. A neve era tanta que não se via um palmo ‘a frente do nariz. Tudo era branco. Os pés enterravam-se num manto branco, aparentemente plácido mas que se revelava um constante desafio, pois não deixava adivinhar o que estaria por baixo. A determinada altura o vento começou a soprar com toda a força e os flocos eram-me então atirados contra a cara, qual areia batendo na pele. Até doía. Por vezes caminhei de costas, para evitar receber as rajadas de frente mas, mesmo assim, conseguia sentir nas pernas as calças coladas e a neve/água a ser forçada contra elas.
Nos ouvidos, o vento e a neve zumbiam, criando uma sensação desagradável quando conseguiam passar o gorro e depositar pequenas gotas frias nas orelhas.
E então, coisa inédita e nunca dantes vista (segundo vim a constatar com os locais).
Para além de todo o corropio de vento e flocos, juntaram-se ‘a tempestade relâmpagos e trovões. O cenário era assustadoramente belo. A luz dos relâmpagos adquire uma cor e um espectro completamente distintos dos que normalmente se vêem. Contudo, não consigo descrever como são. O som também é totalmente diferente. Menos cavo e surdo... talvez abafado.
O que achei mais curioso e me chamou muito a atenção neste caso foi o facto de a tempestade não ter cheiro. Associo sempre chuva, trovões e relâmpagos a um cheiro verde, cheiro a terra, mas hoje... era um cheiro branco. Inodoro, indetectável, limpo, ausente. De todos os factores que poderia enunciar, acho que a ausência de cheiro foi o que tornou a experiência inesquecível. O não ter cheiro conferia, de alguma forma, uma sensação de desconforto que até agora desconhecia... como se nada de familiar existisse no cenário que me rodeava.
Depois de muita luta, consegui comprar a dita camara de ar e regressar sã e salva ao lab. Ironia das ironias, a tempestade amainou exactamente quando lá cheguei. Parecia que tinha estado de propósito ‘a espera que me armasse em carapau de corrida e me fizesse ‘a estrada. Só me faltava que o mesmo sucedesse ‘a noite, quando tivesse que regressar a casa mas, felizmente, os azares já tinham chegado para o dia.
Embora as ruas estivessem cheias de neve, já não nevava e pude pedalar de volta. Foi giro verificar que muitas das vezes ia até mais rápido que os carros, mesmo indo bastante lentamente. Não fosse eu a Maria das montanhas-russas, a aventura divertiu-me muito. Pedalar no gelo exige alguma adrenalina, o que eu adoro, e houve vezes em que o equilíbrio andou preclitante mas, com reflexos rapidíssimos, uma agilidade sobrenatural e um mortal encarpado para saltar da bicicleta digno da super formiga atómica triónica (aposto que há alguém no Brasil a rir com esta tirada), consegui evitar os espalhos eminentes (já estão a ver que tanta neve teve os seus efeitos secundários, nomeadamente provocar ataques de parvoíce. O que vale é que são esporádicos, hehhe).
Seguem-se algumas fotos que, mesmo assim, consegui tirar:
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5 comments:
Em tudo e em todas as circunstâncias, mesmo nas adversas, há sempre algo de novo, e neste caso Belo, para desfrutar.
Tu que até gostas tanto de novas experiências.
Tempestade de Neve com relâmpagos, é mais um novo historial .
Só por isso,, pela compensação do Belo, desculpa, mas nem tenho tanta pena pelo que tanto frio que passaste.
Que mãe desnaturada, hehehe :P
de bici com essa neve toda???
corajosa!!
vi
Ve lá se nao é bom morar em Boston... Experiencias novas e novos desafios, uma vida nada monótona! E pensava eu que aqui estava frio...
Goza, goza! :P
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