6.29.2005

Concerto I

A sala estava a abarrotar. Embora enorme, o Carnegie Hall parecia pequeno para tanta gente. Sentia-se no público a excitação da antecipação de um excelente concerto. Não nos desiludimos: keith, Gary e Jack foram exímios. A música era redonda e o diálogo entre os músicos fluído. Via-se que tocavam com gosto, que apreciavam o que estavam a fazer. Embora todos músicos espectaculares, claro está que Keith Jarrett sobressaíu. No Trio ele é inevitavelmente a estrela e, cada vez que a “palavra” lhe era dada, poemas autênticos saiam das suas mãos, que mais pareciam extensões do próprio piano. Ele contorce-se, levanta-se do banco, dança, quase que se ajoelha… geme, canta. Fecha os olhos, aproxima o ouvido do teclado, vira a cara para o lado… ver para quê? Não precisa de olhar para o teclado, ele sente-o, é dele, é ele.
Uma interpretação com uma intensidade única.
Foi um deleite para os ouvidos e para os olhos. Senti-me bem, feliz, eufórica por vezes… quase que não acreditava que estava de facto a assitir ao vivo a uma actuação do Keith Jarrett. Ri, chorei, suspirei… é impossível não me deixar envolver por aquela música. Dejohnette e Peacock também foram impecáveis. As partes de solo que lhes competiram foram executadas na perfeição e igualmente sentidas. Por vezes, nem se conseguia perceber de onde saiam os sons que Dejohnette tirava da bateria. Literalmente, usou-a como instrumento de percursão que é, pois muitas vezes percrutia ritmos no metal ou nos aros. Peacock dançava com o contrabaixo. Mesmo ‘a distância adivinhavam-se os dedos longos e ‘ageis.
O público acompanhava as interpretações com exclamações e palmas aqui e ali. Sentia-se uma energia muito positiva.
Foi extraordinário… até ao momento em que Keith se aproximou do microfone.
Aí, foi o dissabor da noite.
Eu estava completamente embevecida com tudo o que estávamos a ouvir e assistir e, de todo, ‘a espera daquele balde de água fria.

Quando terminada a actuação, a sala inrompeu numa ovação ensurdecedora. Toda a gente se levantou. As pessoas batiam palmas entusiasticamente, com um sorriso estampado no rosto e, aqueles que queriam de alguma forma guardar um pouco daquele momento, tiravam fotos enquanto os músicos agradeciam. Saídos do palco, ninguém afrouxou. Os aplausos não arredaram pé até que o Trio entrou novamente na sala para nos presentear com o primeiro “encore” da noite. Assim que o público se apercebeu que iam tocar de novo, fez-se silêncio imediato e toda a gente ficou ‘a espera ansiosamente dos próximos sons. Versão de “Somewhere”, de Leonard Bernstein, West Side Story. Uma exclamação e palmas de reconhecimento do público. Uma vez terminado, nova explosão de palmas que continuou até que o Trio entrou pela segunda vez na sala. Aí, Keith vai até ao microfone e fala:
- After all these generations, people continue being Dumb (chamou-nos isto com todas as letras). Can’t you understand flashes bother people on stage (e o mais ridículo é que o pessoal só tirou fotos quando eles estavam a agradecer)? I wish you’d come up here and be flashed in your face to see if you’d like it. I have the sun glasses, but still doesn’t help. C’mon, this is New York, you can at least read can’t you?
Fiquei completamente estupfacta.
Quê?? Que arrogância!!! O pessoal ali, completamente rendido ‘a música deles e a aplaudi-los como nunca e o caramelo vem-me com aquele discurso, a chamar-nos estúpidos?? Foregodeseique (que é como quem diz, For God Sake :P)!!!!
O mais ridículo foi o que se seguiu. Disse:
- And do you want another “encore”? If so, behave yourselves!
No geral, o pessoal ao ouvir a palavra mágica (encore) borrifou-se para o que ele tinha acabado de dizer e desatou a bater palmas. Quer lá o pessoal saber se o Mr. Keith Jarrett “Star” está incomodado! A música é tão extraordinária que o insulto ficou em segundo plano… mas caiu mal.
Seguiram-se ainda mais 2 “encores”, estes sentidos (por mim) já de uma maneira diferente.

Reflexão

Tenho sempre dificuldade em lidar com a ambiguidade: pessoas que são musicalmente lindas e que produzem “o Belo” e depois… revelam ser assim… feias.
E’ para mim estranho como é que depois de dizer algo tão amargo, Keith se conseguiu sentar ao piano e imediatamente começar a tocar e a expressar sons tão diferentes, tão cheios de alma e de sentimento. Lindos mesmo!
Recordo que quando tocava piano havia sempre uns segundos antes da primeira tecla ser premida durante os quais me recolhia, ouvia o que ia tocar dentro da minha cabeça, para depois o começar a sentir no coração e saber que expressão queria que passasse das minhas mãos para o público. Inicialmente tive que saber educar esta dicotomia sentir-exprimir mas depois, o equilibrio era já inato e, o que transmitia era o que sentia e vice-versa. Passei a ser tão transparente nesse sentido que, nos dias em que as coisas não me tinham corrido lá muito bem ou estava desconcentrada, ao começar a tocar a Madalena (professora, mentora, amiga) de imediato percebia e dizia, sorrindo: “Já vi que hoje não estás muito bem disposta! Talvez devamos debruçar-nos mais em exercício de técnica e deixar o Arabesque nº2 de Debussy em paz… hoje não o estás a tratar muito bem!”
Sempre vi a Música como a forma mais fácil, natural e simples de uma pessoa expressar o que de mais sensível tem, o seu interior… aquilo que as palavras não conseguem abranger. E’ tão mais completa! Tem côr, tem cheiro, textura, intensidade, sentimentos…
Inconscientemente, parecia-me natural que alguém que sentisse e vivesse a Música assim seria inevitavelmente uma pessoa transparente, Bonita. Sempre me regi por esses padrões na maneira como aprecio as pessoas. Deslumbro-me facilmente se alguém fica com um brilho nos olhos e com dificuldade de se expressar ao falar de música… pois a música não se fala, sente-se!

Conheci na minha vida 2 pessoas para quem a música era escutada e vivida com as mesmas lentes magnificadoras e através dos mesmo filtros de cores e sensações com que o é para mim. Infelizmente, revelaram-se completos idiotas (e não estou a incluir o Keith nesta categoria, se bem que me parece que para lá caminha… mas não o conheço pessoalmente).
Curiosamente, conheço outro alguém que, em termos musicais, mais parece ter vivido isolado do mundo e que nunca viu na música uma forma de se expressar (basta dizer que Simon & Garfunkel ou Pink Floyd lhe eram totalmente desconhecidos até há uns meses atrás… e falo de alguém na casa dos 30) mas que se revela de uma sensibilidade e sensatez extremas quando ouve os meus desabafos e me aconselha… é uma pessoa Bonita.

Fico confusa….
Afinal, não é linear ver a pessoa que se encontra por trás da música… no geral.
Mas há excepções, certo? Tem que haver…

Gostava de não ter estas dúvidas. Era bem mais romântico e "cor-de-rosa" quando, ingenuamente, sentia que através da música conseguiria ver as pessoas por dentro e não me desiludir.

Bem, mas por outro lado, isto permite que por vezes consiga ter surpresas agradáveis também :)

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